terça-feira, 25 de outubro de 2016

tudo o que é especialmente bonito agora não era especialmente nada antes. a marca de batom na chávena de chá. os joelhos moídos. a manta a desfazer-se.
é isso, antes era tudo especialmente nada. os nadas eram isso mesmo porque havia um maior, havia uma coisa e um centro - se não fosse centro era moldura, mas que se foda o que era porque o que importa é que estava lá e o verbo "existir" não se conjugava no passado.
quando se muda o tempo - acrescenta-se-lhe uma ausência ou três ou todas - têm de se mudar as vontades. agora olha-se para os nadas que são os mais bonitos de todos. a marca de batom na chávena de chá. os joelhos moídos. a manta a desfazer-se. imortaliza-se, imprime-se nos neurónios, revela-se no coração.
quando não se tem um tudo, o nada é mais bonito. perdoem-me a repetição, mas não há sinónimos para verdades absolutas.
estar sozinha é uma sem-vergonhice de detalhes. vê-se a vida como um filme porque há que manter um romantismo ou dois. o fumo sai da caneca em câmara lenta e o ato de estar deitada na cama durante mais de 24 horas é uma espécie de timelapse demoníaco cuja banda sonora é uma filha da puta de um sentimento de culpa.
nem tudo é trágico, claro. há uma certa leveza em não ter de cortar as unhas dos pés quando atingem um tamanho indecente. ou em beber uma garrafa de douro em menos tempo que o socialmente aceitável. ou em não ter testemunhas quando se ignora deliberadamente uma chamada.

não ter ninguém para amar é um jorro de palavras de cinza. coisa nenhuma faz demasiado sentido e andar às aranhas é a única forma de desfilar. escrever é a única maneira de respirar. tudo o resto é tempo. marca de batom na chávena de chá. joelhos moídos. manta a desfazer-se.

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